Há males que vêm para bem. O recente escândalo da adulteração do leite vai ajudar na modificação do antigo sistema de defesa agropecuária do País. O Brasil merece trabalho melhor.
O modelo atual é sabidamente ineficiente. Vem desde
A base do sistema é a chamada inspeção permanente, aquela exercida por médico veterinário oficial, cujo escritório funciona dentro dos laticínios e frigoríficos. O pressuposto é que, com a presença física, ali, no pátio da agroindústria, o profissional verifica, ao vivo, todo o processo. Exerce assim, diretamente, seu poder de polícia sanitária.
No começo, funcionou bem. Poucas eram as empresas, muitos os fiscais sanitários. Vivia-se a época do Estado-patrão. Precários os métodos de controle, difícil a comunicação - afinal, nem fax havia, somente os olhos do veterinário resolviam a parada. Bons anos.
Quanto mais se fortalecia o setor agroindustrial, porém, ganhando escala para atender à urbanização brasileira, a defesa agropecuária encolhia sua eficiência. As empresas e o mercado cresciam em tamanho e complexidade. A fiscalização tradicional, aquela do mano a mano, não dava mais conta do recado. Nem inchando a máquina estatal.
Problema semelhante inquietara muitos países. A saída exigiu mudança do paradigma sanitário. Em vez de fiscalizar diretamente na ponta do consumo, dentro da empresa, a legislação repassou aos próprios empresários a tarefa do controle sanitário. E sacramentou ao governo a função dos supervisores, por meio de auditorias aleatórias.
Riscos sanitários em toda a cadeia produtiva, e não apenas na ponta final, passaram a ser investigados. Essa migração configurou novo método de trabalho, intitulado Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC). Coube às empresas adotar o novo sistema. E os governos garantem sua credibilidade.
No Brasil, o corporativismo jamais permitiu tal modernização. Os técnicos preferem manter seu "poder de polícia" a repartir com a iniciativa privada a responsabilidade pela qualidade dos alimentos processados. O discurso atrasado é forte: supondo-se impolutos e onipresentes, argumentam que as parcerias privadas significam uma subversão da estrutura natural do Estado. Parece coisa getulina.
Já surgiu, no governo de Fernando Henrique Cardoso, proposta para criar uma Agência de Defesa Sanitária no País. Não vingou. Continua, com alguns aperfeiçoamentos, dominando o paradigma antigo. Resultado: o sistema acabou precário, por culpa não propriamente dos veterinários, mas do modelo ultrapassado de fiscalização.
A política de empurrar a sujeira para debaixo do tapete engana há tempos. Entram e saem ministros da Agricultura sem que a poderosa corporação sanitária seja enfrentada. Na gestão do então ministro Roberto Rodrigues, desgraçadamente, ressurgiu a febre aftosa, afetando Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. Percebeu-se, claramente, que o sistema de defesa agropecuária do País estava em frangalhos.
Agora, rolou o leite derramado. Uma vergonha pública. A fraude dos laticínios prova, definitivamente, que o velho sistema está falido. Virou um faz-de-conta. A isenção na fiscalização, imaginada a partir da presença fixa do profissional dentro da empresa, também suscita dúvidas. Afinal, a fraqueza humana não escolhe lugar.
O assunto lembra as auditorias da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) na década de 1970. Projetos de pecuária bovina, espalhados na selva, somente permitiam acesso por via aérea. E os fiscais do governo, a pé, pegavam carona no avião dos empresários para verificar o correto uso do dinheiro público. Os laudos eram, obviamente, favoráveis. Nunca viram a dinheirama desviada.
O tema da fiscalização sanitária é tabu no Brasil. Falta coragem para pôr o dedo na ferida. Tudo se abafa em nome do interesse nacional. Ocorre que, nesta época de árduas negociações internacionais, reconhecer as fraquezas internas pode significar "um tiro no pé". Causam tremedeira, por aqui, as investigações das missões estrangeiras. Seus duros relatórios fomentam a guerra comercial, entremeada com questões sanitárias, como procedem os malandros irlandeses.
A pecuária leiteira cumpre uma agenda positiva, discutida há dez anos, finalmente estabelecida na Instrução Normativa 51, de 2002. Esta impõe melhorias na cadeia produtiva, desde a ordenha até o resfriamento, agora obrigatório. O bucólico e mal asseado latão de leite na beira da estrada teve seus dias contados. Ainda bem.
Essa evolução tecnológica abriu as portas do mercado internacional. De grande importador - em 1998 foram cerca de US$ 500 milhões -, o Brasil começou a exportar leite e derivados. Em 2006 arrecadou US$ 140 milhões
O SIF está numa encruzilhada. Precisa vencer seu corporativismo e se abrir para as novas tecnologias de controle sanitário. Nesse processo, os serviços estaduais de defesa sanitária, sempre desprezados por Brasília, merecem apoio. E os empresários do setor que arquem com sua responsabilidade. Lição de casa, para todos, a cumprir.
Na sanidade animal, antes tarde que nunca, chegou a hora da verdade.
Secretário de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos,agrônomo e já foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98).
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